Thursday, January 5, 2012

O Sono Extenso - A poesia no seu melhor



"Para quem gosta de arte e sobretudo de boa poesia, é obrigatório ler o recente prémio João da Silva Correia, atribuído pela Câmara Municipal de S. João da Madeira, a Sara F. Costa.
Em O Sono Extenso (Âncora Editora), estamos perante a confirmação de uma poeta que já se havia revelado na Melancolia das Mãos (Pé de Página Editores, 2003 – prémio literário da Lousã) e afirmado em Uma Devastação Inteligente (Atelier Editorial) – obra que, em 2007, inaugurou o prémio literário João da Silva Correia, agora, pela segunda vez, arrecadado pela autora.
A crítica têm-na apontado como dotada de uma invulgar maturidade e mestria nas palavras. Jorge Listopad, em 2007, no Jornal de Letras, afirmou: “Sara, na minha imaginação, parece a Agustina na sua idade, sabendo já o que quer!”; Jorge Reis-Sá, no “Magazine Artes” questiona “…quantos poetas puderam assegurar o manejo das formas como Sara Costa o faz já?”e Lauro António, no seu blogue, sublinha que “Não é todos os dias que se descobre um talento a despontar com a força amadurecida de quem domina as palavras…”
Tudo o que possa ser dito sobre a poesia de Sara F Costa são apenas balbuciamentos face ao brutal poder demiúrgico que arranca das palavras. Ao ler o Sono Extenso ganhamos a surpresa de participar no momento da criação, onde tudo é início. A autora transporta-nos ao estado de imersão na realidade onde tudo é possível, porque tudo é dito pela primeira vez. Os seus versos vão-nos despindo de preconceitos e, nus, atiram-nos para o risco absoluto de quem acorda do sono – extenso manto opaco que nos preenche toda a vida – de quem abre os olhos e se vê em plena viagem, no lado oculto mas perigosamente familiar da existência. “e é nas fugas que nos reconhecemos/ e que nos rescrevemos: fugir integrou parte da nossa postura no mundo./ no interior das veias/ possuímos caos em vez de sangue.”(p30)
Este romper da extensão do sono não é a sua negação, nem sequer uma descoberta – só se descobre o que já existia – é a nova gestação do lugar onde eu e o mundo estamos mais próximos. Contudo – “o que é não estar aqui, se quando cá não estou não me conheço?”(p43) – o sono continua… “porque cada um dos meus pecados ilumina uma parte do mundo/ e eu não quero que me falhe a luz.”(p48)
Enquanto Uma Devastação Inteligente denota a influência do maior poeta vivo de língua portuguesa – Herberto Helder – em O Sono Extenso, a autora ganha autonomia sem nada perder da fecunda radicalidade poética do mestre. Com inesgotável imaginação, absoluta originalidade e maturidade de estilo, escorreito, contundente, perturbador, atinge o nível do que há de melhor na poesia em língua portuguesa. A própria linguagem é interpelada e abalada nas seguranças que habitualmente nos confortam:

“há em toda a linguagem um excesso
que nos escorre dos ombros
quando os nossos nervos reflectem a nossa inocência
e um brilho sonolento nos separa dos sons.
mantemos nas mãos todos os crimes
e na superfície das palavras deixamos um fogo salgado
a carbonizar o tempo”(p12)

Sara Costa liberta a palavra, transformando-a em golpes de revolta “Numa fala ensanguentada com a qual construímos todos os muros que/ circundam a nossa língua/ E que nos deixam sempre do lado de lá.”(p80)
A autora assume-se mulher em toda a sua real condição, vivendo intensamente neste mundo, aqui e agora. A ironia e o humor acompanham uma sensualidade, uma sensorialidade e um sentimento tão vibrantes como cruéis (vide, por exemplo, o poema 15 cm, pp76-78). A acutilante crítica social e existencial não nos oferece qualquer tábua de salvação mais ou menos intelectual; bem pelo contrário, acorda-nos para a mundividência de uma geração indomável, que nos mostra o poder de voltar ao início de tudo, ao avesso de qualquer coisa e assim reconstruir-se.
Se valorizamos os textos dos escritores que deram voz ao espírito de cada época e se nos questionarmos sobre a atualidade, temos sim aqui um caso sério desta coisa em que vivemos e da identidade de uma geração. Mais ainda: irrompendo pela sua irrepetível existência, a autora arrasta-nos consigo pelo âmago da Humanidade afora, numa desvairada viagem sem portos de abrigo, nem de retorno.
O Sono Extenso não é só um livro com 73 poemas. É um livro em que a leitura de cada poema nos incomoda, também pela potencial perda de todos os outros que ainda não lemos. Nada é previsível, tudo é surpresa, quando se rompe o extenso sono em que sempre vivemos.
Sara F. Costa é uma escritora genial e, com toda a certeza, iremos ouvir muito sobre esta mulher."

Josias Gil, O Regional